O manifesto
invisível
Há 150 anos, em fevereiro
de 1848, Marx e Engels publicavam a obra que revolucionou a
história política moderna
ROBERT KURZ
Quando aniversários de nascimento, de morte ou datas
comemorativas que se reportam a um intervalo de mais de cem anos
são festejados, em geral o objeto da memória já se tornou
peça de museu, já foi classificado como artefato de um passado
morto e não constitui mais motivo para alarme. Os folhetins, as
honras culturais e os administradores da história podem celebrar
os seus eventos e debruçar-se comodamente sobre os documentos
envidraçados daquilo que um dia fez os corações bater mais
rápido. O "Manifesto do Partido Comunista" do ano de
1848, escrito por dois jovens intelectuais então quase
desconhecidos, Karl Marx e Friedrich Engels, manteve-se durante
muito tempo surpreendentemente atual. Um texto que, mesmo após
um século, ainda desperta um ódio raivoso e é repetidamente
censurado, embora ao mesmo tempo se difunda que nem a Bíblia,
realmente há de conter material intelectual explosivo para toda
uma época.
No entanto, o "Manifesto" não pode mais festejar o seu
150º aniversário como grandeza apaixonadamente disputada em
meio ao tumulto das lutas sociais. Em algum momento dos anos 80,
no mais tardar com a grande virada de 1989, esse documento
candente tornou-se subitamente frio e insípido, sua mensagem
amarelou da noite para o dia e hoje só é estudado como
documento de uma história que chegou ao fim "sem ira nem
zelo". Mas com isso não se esgotou a teoria de Karl Marx,
que só pode morrer e tornar-se histórica junto com o
capitalismo, nem o conteúdo do "Manifesto" tornou-se
insustentável por fundar-se desde o início num
"erro". Se o neoliberalismo faz tal afirmação, ela
não passa de um ladrido de cão no encalço de seu antigo objeto
de ódio, que já não pode mais representar uma crítica do
capitalismo desenvolvido; isso só de monstra que ele,
neoliberalismo, manteve-se aferrado aos velhos tempos.
A fim de compreender por que o "Manifesto" exprimiu
durante tanto tempo uma verdade e apenas no fim do século 20
tornou-se de certa maneira falso, nós temos de reconhecer o
caráter contraditório da teoria de Marx, sempre tratada
erroneamente como uma unidade fechada. Há, por assim dizer, dois
Marx: dois teóricos na mesma cabeça, que seguem for mas de
argumentação completamente diversas. O Marx nº 1 é o Marx
universalmente conhecido, positivo e "exotérico", o
êmulo e dissidente do liberalismo, o político socialista de seu
tempo e o mentor do movimento operário, que nunca desejou outra
coisa senão direitos de cidadania e um "salário justo para
uma jornada de trabalho justa". Esse Marx nº 1 parece
adotar uma perspectiva ontológica do trabalho, a parda ética
protestante a ela correspondente, reivindicando a
"mais-valia não paga" e querendo substituir a
"proprieda de privada (jurídica) dos meios de
produção" pela propriedade estatal.
E não resta dúvida este é também o Marx do "Manifesto
Comunista", a cujo nível o seu ajudante e colaborador
Engels restringiu-se pelo resto de sua vida. Trata-se do
manifesto da "luta de classes", da forma como ela
definiu o desenvolvimento do mundo moderno entre 1848 e 1989.
"Vosso direito", bravejam Marx e Engels contra a ainda
jovem burguesia capitalista, "é somente a vontade de vossa
classe elevada a lei". Embora haja as chamadas condições
materiais, o que em última instância define e impulsiona a
história é a subjetividade irredutível da vontade consciente
dos interesses sociais antagônicos: "classe contra
classe", sem que se indague de que modo esse grande sujeito
social e seus interesses foram realmente constituídos. Com toda
a candura, ainda se ouve aqui a linguagem da filosofia
iluminista, na qual a sociedade e seu desdobramento reduzem-se,
de forma próxima às ciências naturais, a atos de vontade
conscientes.
Em correspondência, o objetivo é somente a reversão das
relações de domínio existentes, ou seja, "a elevação do
proletariado a classe dominante"; e "o proletariado
utilizará o seu domínio político para, aos poucos, arrancar à
burguesia todo capital". De súbito, o conceito de capital
não indica mais uma relação social, mas um aglomerado de
riqueza material, que uma classe é capaz de tomar à outra e
cuja forma social não entra em consideração. Dinheiro e Estado
aparecem, com isso, como objetos neutros pelos quais se luta e,
de certa forma, como despojos que cabem a uma ou outra classe, de
modo que o proletariado legitima-se moralmente nessa luta como
sustentáculo do "trabalho" diante da "renda
parasitária" dos capitalistas. Em decorrência, o
"Manifesto" exige como medida essencial a
"centralização do crédito nas mãos do Estado" e
"iguais imposições de trabalho (!) a todos", bem como
a "criação de exércitos industriais (!)". Adorno
sabia o que estava dizendo ao criticar o Marx do
"Manifesto" por querer transformar toda a sociedade
numa prisão do trabalho. As ulteriores ditaduras socialistas na
União Soviética e no Terceiro Mundo portaram, efetivamente,
todos os traços de um comunismo de caserna utópico-laborativo.
Mas existe também um Marx totalmente diverso. Esse Marx nº 2 é
o Marx "esotérico" e negativo, até hoje obscuro e
pouco conhecido, o descobridor do fetichismo social e crítico
radical do "trabalho abstrato" e da ética repressiva a
ele correspondente, definida pelo moderno sistema produtor de
mercadorias. O Marx nº 2 orienta sua análise teórica não
pelos interesses sociais imanentes ao sistema, antes pelo
caráter histórico desse próprio sistema. O problema não é
mais a "mais-valia não paga" ou o poder jurídico da
propriedade privada, antes a forma social do próprio valor, que
é comum às classes antagônicas e a causa do antagonismo de
seus interesses. Tal forma é "fetichista" porque ela
constitui uma estrutura sem sujeito "por trás das
costas" dos envolvidos, na qual eles são conjuntamente
submetidos ao eterno processo cibernético de uma transformação
de energia humana abstrata em dinheiro.
No plano teórico do Marx nº 2, algumas afirmações essenciais
do "Manifesto Comunista" são simplesmente absurdas. O
capital, aqui, não é mais algo que seria possível arrancar às
classes dominantes, mas, antes, a relação do dinheiro
totalizado, que se tornou auto-referencial e, assim,
autonomizou-se num movimento fantasmagórico, funcionando (como
mais tarde diria Marx em "O Capital") como
"sujeito autônomo". Superar essa relação absurda e
deixar para trás o moderno fetichismo contradiz, portanto, um
simples prolongamento da luta de classes imanente ao sistema. Em
vez disso, é necessário, em última instância, um rompimento
consciente com a forma comum do interesse, para passar do
movimento desvairado do valor e suas categorias (trabalho,
dinheiro, mercadoria, mercado, Estado) a uma
"administração de coisas" emancipatória e comunal,
usando conscientemente as forças produtivas segundo critérios
da "razão sensível" em vez de abandoná-las ao cego
processamento de uma "máquina" fetichista.
Qual a relação entre o Marx nº 1, "exotérico", e o
Marx nº 2, "esotérico"? Os dois Marx não podem ser
divididos num "jovem" Marx e num Marx
"maduro", já que o problema, na forma de
contradição, percorre toda a teoria de Marx. Elementos da
crítica ao fetichismo da forma-valor e do "trabalho"
encontram-se antes do "Manifesto Comunista" nos
escritos da juventude, ao passo que, inversamente, elementos do
pensamento sociologicamente reduzido emergem no
"Capital" e nos escritos posteriores. O problema está
em que Marx, a seu tempo, não era capaz de reconhecer a
contradição em sua teoria, pois não se tratava de uma
contradição só da teoria, porém da própria realidade. Marx
foi o único a descobrir a forma comum dos interesses de classe
antagônicos e seu caráter histórico limitado; essa descoberta,
contudo, não podia tornar-se praticamente eficaz, pois o moderno
sistema produtor de mercadorias tinha pela frente longos 150 anos
para desenvolver-se. Para o movimento operário, portanto, o Marx
nº 2 era incompreensível, só lhe sendo possível perceber a
variante do "Manifesto Comunista".
Nesse sentido, a "luta de classes" pode ser
compreendida de maneira totalmente diversa: como estava longe de
contribuir para a queda do capitalismo, ela constituiu antes o
motor interno de desdobramento do próprio sistema capitalista. O
movimento operário, sempre restrito à forma fetichista de seus
interesses, representou como que o progresso do modo de
produção capitalista contra o conservadorismo irrefletido das
respectivas elites capitalistas. Ele impôs a elevação dos
salários, redução da jornada de trabalho, liberdade de
associação, sufrágio universal, intervenção estatal,
política industrial e de mercado de trabalho etc. como
pressupostos do desenvolvimento e da expansão do capitalismo
industrial. E o "Manifesto Comunista" foi o estopim
desse movimento histórico dentro do invólucro fetichista.
Se hoje esse movimento encontra-se inerte, isso se dá porque o
próprio sistema capitalista não possui mais um horizonte de de
senvolvimento. A "luta de classes" chegou ao fim e com
ela o "Manifesto Comunista" também perdeu sua força.
A sua linguagem instigante petrificou-se em documento histórico.
O texto tornou-se irreal, pois a sua tarefa foi cumprida.
Justamente por isso, no entanto, chegou a hora do Marx nº2, o
"esotérico"; o sistema geral de coordenadas do
"sujeito automático", que na época histórica da luta
de classes não foi percebido como fenômeno distinto e
permaneceu como que "invisível", tornou-se problema
candente, e sua crise global impregnará o próximo século.
Agora cabe escrever outro manifesto, cuja linguagem ainda não
foi descoberta.
Robert Kurz é sociólogo alemão, editor da revista
"Krisis", autor de "Colapso da Modernização''
(Paz e Terra) e "Os Últimos Combates" (Vozes). Ele
escreve mensalmente na Folha, na seção "Autores'' do
Mais!.
Tradução de José Marcos Macedo.