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A epidemia
asiática
ROBERT KURZ
Não faz muito tempo, proclamou-se o "século do
Pacífico". O guru da administração, John Naisbitt,
mostrava-se entusiasmado com a Ásia das "grandes
tendências". O peso da economia, dizia-se, será deslocado
da relação atlântica entre os Estados Unidos e a Europa para a
relação pacífica entre os Estados Unidos e a Ásia.
Mas a nova região dos sonhos do crescimento já se tornou,
poucos anos depois, um pesadelo.
O boom do Sudeste Asiático nunca teve bases sérias. Desde o
início ele foi guiado pelo volante de um ciclo deficitário
transcontinental.
A industrialização japonesa, voltada unicamente para as
exportações, acumula há mais de uma década vultosos
excedentes no comércio com os Estados Unidos.
Porém, os Estados Unidos não pagam nem com as receitas da
exportação para outros países nem com as próprias economias,
mas com sua imagem de potência mundial e com títulos do Tesouro
americano, dos quais o Japão é o principal beneficiário.
A conjuntura interna dos Estados Unidos -aparentemente promissora
nos últimos anos, com uma participação inaudita do setor
terciário em mais de 70%- foi também induzida sobretudo pelo
endividamento externo galopante, que, nesse meio tempo, se
tornou, de longe, o maior do mundo.
Se os Estados Unidos hoje são tidos como padrão de êxito
econômico, então um moribundo, que depende de aparelhos
cardíacos e respiratórios, há de ser tomado como exemplo
luminoso de bem-estar corporal.
Embora, no fundo, o sucesso das exportações nipônicas seja
pago à força de empréstimos excessivos contraídos com os
próprios Estados Unidos, os japoneses consideram-se ricos.
Nos anos 80, com base nessa riqueza fictícia, soprou-se uma
enorme bolha especulativa dos mercados acionário e imobiliário
japoneses.
Desde que esta bolha estourou, no início dos anos 90, o Japão
é atormentado por uma massa de créditos podres, na ordem,
talvez, de US$ 1 trilhão.
Porém, esse desastre ainda não foi realizado, mas
"retido" sorrateiramente em sociedades
"testa-de-ferro" criadas por eles próprios.
Ao mesmo tempo, ampliou-se o ciclo deficitário do Pacífico, com
o ingresso, primeiro, dos "pequenos tigres" (Hong Kong,
Coréia do Sul, Taiwan e Cingapura) e, depois, dos "tigres
de segunda geração" (Tailândia, Indonésia, Malásia e,
por último, Filipinas).
Em consonância com o modelo japonês, a exportação unilateral
dos tigres tomou o rumo da "mão única do Pacífico".
Mas essa segunda onda de exportações dependeu inteiramente,
desde o princípio, do Japão.
As indústrias exportadoras dos novatos detinham somente uma
parcela ínfima da cadeia produtiva e eram obrigadas a
desembolsar quantias enormes em bens de produção e componentes,
comprados do Japão.
Por isso, o déficit comercial, no que se refere ao Japão,
acumulou-se tanto em termos relativos quanto absolutos.
Surgiu, portanto, um ciclo deficitário interasiático entre o
Japão e os tigres.
Se os Estados Unidos pagam seu excedente de importação em
relação ao Japão com títulos da dívida, os tigres pagam as
suas dívidas para com os japoneses com o excedente de
exportação para os Estados Unidos.
Para conseguir agenciar seu crescente déficit em relação ao
Japão, os tigres ampliam, de forma constante, suas capacidades
exportadoras, sem ter uma efetiva vantagem na produtividade.
Eles só puderam prosperar à base de salários baixos e taxas de
câmbio politicamente fixadas. Se as taxas eram baixadas, para
favorecer as exportações, logo elas tinham de ser elevadas de
modo artificial para atrair capital estrangeiro.
De fato, enquanto os salários subiam devido à ampliação
mecânica das empresas e ao esgotamento das reservas de
mão-de-obra, segundo a lei da oferta e procura, explodiam
também os custos para a crescente importação de bens de
produção e capital. Tornou-se evidente que a infra-estrutura
negligenciada e explorada aos limites consumirá rios de dinheiro
para investimentos suplementares, caso se queira manter o boom
das exportações nos próximos anos.
O atrelamento ao dólar (ou à outra "moeda forte") e,
portanto, a estabilização de uma taxa de juros elevada não era
especialidade dos tigres.
Os "países emergentes" da América Latina e alguns
governos reformistas do Leste Europeu também utilizaram esse
meio, para garantir o fluxo de capital urgentemente requisitado.
Era de se esperar que tais taxas de câmbio políticas, às quais
não correspondia uma substância econômica suficiente,
suscitariam a especulação dos grandes fundos internacionais
contra as moedas amparadas artificialmente.
O "agosto negro" de 1997, no qual a maioria das moedas
asiáticas caiu por terra, foi um prenúncio também para a
América Latina e o Leste Europeu. Logicamente, ao colapso das
moedas seguiu-se o colapso das Bolsas.
Enquanto os potenciais de exportação falsamente inflados
ameaçam transformar-se em ruínas de investimento, o capital
internacional aplicado sempre a curto prazo continua a
retrair-se.
Se, de início, a "gripe asiática" parecia manter-se
regionalmente restrita, a intervenção especulativa no dólar de
Hong Kong desencadeou, por sua vez, um crash global das Bolsas
que há muito se cogitava.
Não obstante, os políticos e os administradores de fundos se
empenham, na medida de suas forças, em maquiar a situação.
Ora, é uma mentira esfarrapada afirmar que o caso é somente de
purificação de alguns excessos especulativos, ao passo que a
economia real estaria em plena forma.
Na verdade, a própria economia aparentemente real há tempos só
é impulsionada pelos aumentos fictícios de valor -e isso em
escala mundial.
Por isso, o abalo causado pelo crash de Hong Kong não foi de
teor meramente psicológico. Em todos os países, inclusive na
Europa, o volume crítico do endividamento de pessoas físicas,
empresas e Estados há muito foi atingido.
Rompeu-se o elo mais fraco do cassino-capitalismo global -o ciclo
deficitário interasiático.
Em breve, o Japão, em seu meio asiático, será confrontado com
uma segunda montanha de crédito podre, que não se deixa
manipular tão facilmente.
Com isso, aproxima-se um fantasma que há anos paira no
horizonte: o Japão poderia ser forçado, em grande escala, a
bater em retirada dos empréstimos norte-americanos, a fim de
não cair no abismo em conjunto com seus parceiros asiáticos.
O fim do ciclo deficitário interasiático conduzirá, mais cedo
ou mais tarde, ao colapso do grande ciclo deficitário do
Pacífico.
O suposto "porto seguro" em que o capital, até hoje,
reguardou-se da quebra das Bolsas estaria, assim, obstruído.
Ao capital à deriva restaria apenas refugiar-se no ouro. De
certa forma, isso corresponderia ao colapso mundial dos mercados
financeiros e o fim da prosperidade ilusória também nos Estados
Unidos.
Um tal processo é possível na forma de uma erupção repentina,
mas também pode se dar num espaço de tempo mais longo, em
pequenos surtos, acompanhado de um movimento pendular das moedas
cada vez mais espaçado. Em todo caso, ele parece inevitável. O
cassino-capitalismo atingiu o seu zênite; por trás dele, é
possível vislumbrar os contornos de uma crise econômica mundial
qualitativamente nova.
Robert Kurz é sociólogo e ensaísta alemão;
publicou no Brasil, entre outros, "O Colapso da
Modernização" e "O Retorno do Potemkim" (Paz e
Terra); é co-editor da revista "Krisis"; ele escreve
uma vez por mês na série "Autores" da Folha.
Tradução de José Marcos Macedo.
http://planeta.clix.pt/obeco/
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