O capitalismo confrontado com outras formas possíveis de vidaAnselm Jappe faz um retorno a Karl Marx, confrontando os Grundrisse e O Capital. E afirma: “o capitalismo absolutamente não corresponde a uma ‘natureza humana’ e constitui, antes, uma violenta ruptura com as formas de sociabilidade que têm reinado por muitíssimo tempo no mundo inteiro”Por: Graziela Wolfart | Tradução de Benno Dischinger“A visão marxiana do capitalismo como formação histórica que se instaura somente após uma longa história precedente (...) nos permite efetivamente captar a singularidade do capitalismo. Esse é bem outra coisa do que ‘natural’ e não é o resultado final de um desenvolvimento histórico que tendesse a isso desde sempre como à sua realização perfeita. É nesse sentido que se pode falar do capitalismo como ‘parêntese na história da humanidade’. Não, por certo, como um incidente passageiro após o qual se poderia retomar um decurso substancialmente benévolo da história”. Quem faz esta reflexão é o filósofo e ensaísta alemão Anselm Jappe, em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line. Em sua visão, “Marx demonstrou que mesmo as categorias mais basilares do capitalismo, como o trabalho, o valor e a mercadoria, são categorias históricas, e não eternas. Assim como vieram ao mundo, podem também ser superadas um dia. Mas se isso vai acontecer, como e o que as substituirá, é outra questão”. E conclui: “a contribuição que podem dar os Grundrisse para compreender o mundo de hoje é a mesma de toda a crítica da economia política de Marx: ir a fundo na compreensão das convulsões atuais e ver que as injustiças sociais, as distribuições desiguais dos recursos, os desastres financeiros, as catástrofes ecológicas e a anomia social são elas próprias a expressão de uma crise mais vasta e profunda, a expressão de uma sociedade na qual a atividade social não é regulada conscientemente, mas depende das mediações fetichistas e autonomizadas do valor e das mercadorias, do dinheiro e do trabalho”. Anselm Jappe realizou seus estudos na Itália e na França. Além de inúmeros artigos já publicados na revista alemã Krisis, é autor de Guy Debord (Petrópolis: Vozes, 1999) e As aventuras da mercadoria (Lisboa: Antígona, 2006). Leciona na Academia de Belas-Artes de Frosinone (Latium, Itália). Após a cisão interna do Grupo Krisis, posicionou-se ao lado dos autores que fundaram a revista Exit!, cujos principais integrantes são Robert Kurz, Roswtiha Scholz e Claus Peter Ortlieb. Participa do Grupo Crítica Radical e da revista “EXIT – Crítica do Capitalismo para o Século XXI – com Marx para além de Marx”. Confira a entrevista.IHU On-Line – A partir da leitura dos Grundrisse, quais são os elementos fundamentais que Marx usa para sua crítica à economia política? Anselm Jappe – Marx escreveu os Grundrisse em 1857-1858, em poucos meses, em meio a uma crise econômica que ele acreditava ser a crise definitiva do capitalismo. Foram necessários depois outros dez anos e muitos estudos suplementares para desenvolver O Capital. Segundo certa ortodoxia marxista, para a qual O Capital constitui o ponto de chegada de toda a reflexão de Marx, os Grundrisse não são senão um esboço, um trabalho preparativo e imperfeito, motivo pelo qual foram publicados somente em 1939, em Moscou. A partir de 1968, os Grundrisse foram traduzidos ao inglês, francês, italiano e espanhol e, no âmbito da “nova esquerda”, afirmava-se depois que talvez esse manuscrito contivesse uma versão superior da crítica da economia política, porque menos “cientificista”, “economicista” e “dogmática”. Na verdade, nenhum dos dois pontos de vista se justifica. No que se refere à crítica marxista da economia política, muitas de suas categorias fundamentais começam somente a articular-se durante a elaboração dos Grundrisse e não encontram uma formulação definitiva antes da segunda redação d’O Capital, em 1873: sobretudo a teoria do valor e do dinheiro. A dupla natureza do trabalho - abstrata e concreta – mal e mal começa a aparecer nos Grundrisse. Ali Marx ainda não distingue claramente entre valor e valor de troca, nem sequer, sempre de modo rigoroso, ente valor e preço. Tudo isso tem sido indagado com extrema nitidez por Roman Rosdolsky em seu Gênese e estrutura do capital de Marx (Rio de Janeiro: Contraponto, 2001), publicado em 1967 e cuja tradução curiosamente saiu no Brasil dez anos antes dos próprios Grundrisse. Além disso, falta nos Grundrisse o conceito de fetichismo da mercadoria. É, portanto, errado opor (como o faz, por exemplo, Karl Korsch ) um jovem Marx revolucionário a um velho Marx d’O Capital, que se teria limitado a observar com distância científica um processo determinístico. Na verdade, a natureza destrutiva do trabalho abstrato e da sociedade baseada sobre o mesmo é descrita de modo pleno principalmente no primeiro capítulo do Capital – e uma crítica verdadeiramente radical deve começar daqui. IHU On-Line – O que está nos Grundrisse, mas que não entrou em O Capital? Anselm Jappe – Os Grundrisse contêm alguns desenvolvimentos extremamente interessantes que faltam quase de todo n’O Capital. Há algum tempo se discute bastante sobre o assim chamado “Fragmento sobre as máquinas”, contido nos Grundrisse, onde Marx prevê que um dia a produção altamente “tecnologizada” não será mais mensurável em termos de valor, isto é, de tempo de trabalho despendido. Mas pode-se interpretar essa passagem de modos muito diversos: para os pós-operaristas , ele anuncia a generalização do general intellect, de uma intelectualidade difusa como força produtiva que fará sumir as relações de produção capitalista e emergir uma nova classe produtiva. Para a “crítica do valor ”, pelo contrário, trata-se de um ulterior elemento da crise do capitalismo que atingiu os seus limites internos por causa das tecnologias que diminuem a produção de valor, o qual só é criado pelo trabalho vivo. IHU On-Line – Como eram os sistemas anteriores ao capitalismo? Anselm Jappe – Esta é outra particularidade dos Grundrisse: a maior atenção que Marx concede aí às “formas de produção que precedem as capitalistas”, como se chama um dos seus capítulos mais famosos (e mais elaborados), com frequência publicado à parte. Marx analisa aí as comunidades antigas (antes das Gemeinschaft, “comunidades”), e ele utiliza a palavra Gemeinwesen, literalmente a “essência-comum” da terra e dos outros recursos, bem como a evolução gradual dessas sociedades em direção à propriedade privada individual durante a Antiguidade. Esta análise é importante, porque n’O Capital Marx fala quase exclusivamente da instauração do capitalismo a partir do século XVI, e não de quanto o precedeu. Marx, sem idealizar essas comunidades e sem falar em geral de “comunismo originário”, põe, todavia, em relevo que durante uma grande parte da história da humanidade a produção e reprodução da vida se desenvolveram sem se basear sobre o valor e sobre a mercadoria, sem trabalho abstrato e sem dinheiro que se valoriza comprando força-trabalho. Nessas sociedades, a sociabilidade – o elo social – residia na produção e não era algo que se lhe acrescentava post festum, como acontece na sociedade da mercadoria, onde o produto se desdobra em produto útil e em portador de valor, o qual se torna a única mediação entre os produtores, de outra forma isolados. Os indivíduos pertenciam organicamente à sua comunidade e não eram produtores através da troca dos seus produtos. Marx considera, por outro lado, o abandono de tais formas de comunidade como uma etapa historicamente necessária em direção ao desenvolvimento de uma individualidade mais rica. IHU On-Line – Em outra entrevista que nos concedeu, o senhor afirmou que “o capitalismo é um parêntese na história da humanidade”. Em que sentido a obra de Marx, especialmente os Grundrisse, contribui para esse pensamento? Anselm Jappe – Talvez sejamos hoje mais céticos no que se refere a esta presumida “missão civilizadora do capital”. Mas, a visão marxiana do capitalismo como formação histórica que se instaura somente após uma longa história precedente, a qual se baseava sobre princípios completamente diversos – visão que, como já foi dito, é mais nítida nos Grundrisse do que n’O Capital –, nos permite efetivamente captar a singularidade do capitalismo. Esse é bem outra coisa do que “natural” e não é o resultado final de um desenvolvimento histórico que tendesse a isso desde sempre como à sua realização perfeita – este tem sido o ponto de vista do Iluminismo quando fazia a apologia do capitalismo. É nesse sentido que se pode falar do capitalismo como “parêntese na história da humanidade”. Não, por certo, como um incidente passageiro após o qual se poderia retomar um decurso substancialmente benévolo da história. É bem possível que após esse “parêntese” restem somente ruínas. Mas o capitalismo absolutamente não corresponde a uma “natureza humana” e constitui, antes, uma violenta ruptura com as formas de sociabilidade que têm reinado por muitíssimo tempo no mundo inteiro. Além disso, a visão que Marx tem das sociedades pré-capitalistas parece até mesmo bastante negativa. Ele as associa em geral à guerra e à competição em torno dos recursos. Esse pensamento deve ser integrado com a constatação de Marcel Mauss , segundo o qual a “cadeia do dom” constitui uma “rocha eterna” da sociabilidade humana. Em todo o caso, Marx demonstrou que mesmo as categorias mais basilares do capitalismo, como o trabalho, o valor e a mercadoria, são categorias históricas, e não eternas. Assim como vieram ao mundo, podem também ser superadas um dia. Mas se isso vai acontecer, como e o que as substituirá, é outra questão. O conceito de comunidadeEm geral, o conceito de comunidade desempenha um papel maior nos Grundrisse do que n’O Capital, também como termo de comparação para captar a atomização social que comporta o capitalismo.
ou
[Trad.: “Dessa forma, o dinheiro é ao
mesmo tempo imediatamente o real ser comum, enquanto ele é
para todos a substância universal da subsistência e
simultaneamente o produto comunitário de todos.
Porém no dinheiro, como vimos, o ser comum é ao
mesmo tempo mera abstração, coisa simplesmente
externa, casual para o indivíduo” (p.152) Aqui, como em outras passagens, o dinheiro aparece como forma falsa e
alienada da comunidade humana, do Gemeinwesen – que ele
remete ao Gattungswesen, ao “ser
genérico” dos escritos jovens de Marx,
demonstrando assim a posição
intermediária dos Grundrisse entre obras jovens
(“filosóficas” e
antropológicas) e tardias (de crítica da economia
política) de Marx. Mais do que n’O Capital, o
capitalismo é aqui denunciado na base de um confronto com
possíveis outras formas de vida. Nas sociedades antigas, diz
Marx, a riqueza não era jamais um fim em si mesmo, mas
servia para criar bons cidadãos. Característica
do capitalismo é, ao invés, a tendência
ao crescimento infinito – e nos Grundrisse, Marx a deduz do
próprio conceito de valor, de sua estrutura de base: [Trad.: “Como soma quantitativamente determinada, soma delimitada, ele também é somente um limitado representante da riqueza global [...] Considerado como riqueza, como forma comum da riqueza, como valor que vale como valor, ele também é o impulso constante de ultrapassar seu limite quantitativo: processo interminável” (p. 196)]. IHU On-Line – Em que medida a dialética de Hegel influenciou para que Marx mudasse o texto dos Grundrisse e chegasse à obra O Capital? Anselm Jappe – Os Grundrisse estão repletos de intuições fulgurantes, com frequência expressas numa linguagem ao mesmo tempo poética e filosófica que deriva da retomada de conceitos hegelianos. Após as críticas que o jovem Marx dirige a Hegel por ter dado uma descrição invertida do mundo, acusando-o de partir do abstrato em vez de iniciar do concreto, Marx retoma nos Grundrisse muitos conceitos hegelianos, mas dessa vez antes como descrição fiel de um mundo realmente invertido, no qual o abstrato realmente domina o concreto. Marx deduz aqui as características do capitalismo – o trabalho, o capitalista – do conceito de capital (um exemplo: “Die Tendenz, den Weltmarkt zu schaffen, ist unmittelbar im Begriff des Kapitalis gegeben” [Trad: A tendência de criar o mercado mundial está contida imediatamente no conceito do capital] (p. 321): um procedimento que podia desconcertar os marxistas tradicionais por seu aparente “idealismo”, mas que também pode ser lido como uma descrição do caráter “realmente metafísico” do capitalismo, onde o trabalho concreto serve somente para exprimir o trabalho abstrato e cuja forma basilar é a mercadoria, que Marx chama “sensível-suprassensível”. Finalmente, a insistência de Marx nas formas comunitárias das sociedades pré-capitalistas e no fato de que o mercado capitalista constitui um desenvolvimento tardio é importante também para seu desmentido daquilo que se chama, hoje, “individualismo metodológico” nas ciências sociais. Enquanto a economia política de Smith e de Ricardo já partia das ações dos atores individuais que se encontram no mercado, Marx parte resolutamente do seguinte princípio: “Die Gesellschaft besteht nicht aus Individuen, sondern drückt die Summe der Beziehungen, Verhältnisse aus, worin diese Individuen zueiander stehen” [Trad: “A sociedade não consiste de indivíduos, porém expressa a soma das relações, nas quais esses indivíduos se defrontam reciprocamente”] (p. 189). Isso também significa que não é a vontade subjetiva dos capitalistas que cria o capitalismo, mas é a ação anônima do valor: “Der Wert tritt als Subjekt auf” [“O valor aparece como sujeito”] (p. 231). É importante sublinhá-lo porque no primeiro capítulo d’O Capital, Marx introduz somente algumas poucas mercadorias que se trocam e deduz as relações mais complexas desta “célula germinal”. Semelhante procedimento, devido a motivos de exposição, poderia induzir ao erro de pensar que Marx põe igualmente na base de suas análises os comportamentos de atores individuais e isolados; os Grundrisse demonstram, se houver necessidade disso, que não é assim. O marxismo universitário fez, pelo contrário, muitas concessões em nome da “cientificidade” ao individualismo metodológico, sobretudo ao marginalismo na economia. IHU On-Line – Qual a principal contribuição dos Grundrisse e da obra de Marx, como um todo, para entendermos nosso tempo, principalmente o mundo do trabalho? Anselm Jappe – A contribuição que podem dar os Grundrisse para compreender o mundo de hoje é a mesma de toda a crítica da economia política de Marx: ir a fundo na compreensão das convulsões atuais e ver que as injustiças sociais, as distribuições desiguais dos recursos, os desastres financeiros, as catástrofes ecológicas e a anomia social são elas próprias a expressão de uma crise mais vasta e profunda, a expressão de uma sociedade na qual a atividade social não é regulada conscientemente, mas depende das mediações fetichistas e autonomizadas do valor e das mercadorias, do dinheiro e do trabalho. E nos Grundrisse se alude, mais do que nas outras grandes obras marxianas, ao fato de que não se sairá do capitalismo sem recriar alguma forma de “comunidade”. E é sempre nos Grundrisse que Marx anuncia claramente (no final da terceira parte) que o capitalismo está condenado a desmoronar precisamente por causa do desenvolvimento das forças produtivas que o põe em movimento. Sua “profecia” levou muito tempo para se realizar – mas talvez estejamos assistindo atualmente a esta passagem histórica. |