A reflexão sobre os impasses presentes – Entrevista
O Diario do Nordeste
Caderno 3
ENTREVISTA (7/10/2009)
De passagem por Fortaleza para participar do Fórum Transnacional da Emancipação Humana, organizado pelo movimento Crítica Radical, o filósofo alemão Anselm Jappe conversou com o Caderno 3 sobre um tema que conhece em profundidade. Autor de „Guy Debord“ e „As aventuras da Mercadoria“, Jappe falou sobre o pensamento radical do autor francês, conhecido por seu livro „A sociedade do espetáculo“ (1967)
Guy Debord, assim como Marx, outro autor com o qual você é bastante familiarizado, costuma ser descrito como „profeta“, como se sua obra de 1967 falasse de hoje. E quanto às falhas desse pensamento? O que, em Debord, precisa ser repensado?
Raramente, no cenário contemporâneo, uma pessoa passou tão rápido da obscuridade a um certo renome como Debord. Quando ele morreu, em 1994, não era sequer conhecido por um grande público. E, 15 anos depois, pode-se ver que nas universidades brasileiras muitos já publicaram livros sobre sua obra, mesmo em Fortaleza. Há uma estatística que diz que Debord é o segundo autor mais citado pela mídia na França. Todo esse renome é ligado a uma questão superficial, de uma crítica à sociedade do espetáculo. Às vezes, ele é chamado de „o profeta da sociedade do espetáculo“. Quase sempre só pra dizer „Sim é verdade, hoje em dia há muita televisão, muita de virtual“. Como já disse no meu livro, se há algo importante na crítica de Debord, não é a crítica à mídia. Ele anunciou uma crise bem mais profunda do sistema capitalista. Seu conceito de sociedade do espetáculo é uma retomada do conceito marxista de fetichismo da mercadoria. Na crítica, a crise atual do sistema capitalismo não pode ser interpretada em termos de luta de classes, mas antes com o domínio anônimo da mercadoria (quem atribui o valor aos produtos e à força de produção?). Assim como aconteceu com Marx, pode-se dizer que uma parte das obras de Guy Debord foi profética. Mas a minha opinião é diferente de quando a mídia o chama de profeta. Para além da palavra profeta, o pensamento de Marx manteve em 150 anos uma certa atualidade. Muitas vezes declararam morte à sua teoria, a primeira no final do século XIX. No entanto, cada geração encontrou novas verdades em sua obra. Debord e Marcuse talvez sejam os únicos autores dos anos 60 que guardam alguma atualidade.
Tendo em mente esta crítica que você faz à apropriação de Debord pela mídia, pode-se concluir que ele é um autor muito comentado, mas pouco lido?
Isso pode ocorrer com todos os autores. Na França, até o presidente da república já usou a expressão „sociedade do espetáculo“. Os jornais usam pelo menos uma vez por semana essa expressão, que se tornou uma coisa muito midiática. Ao mesmo tempo, ele é de fato lido, tanto que seus livros ganham reedições contínuas. Particularmente, acho que sua obra mais importante é „A sociedade do espetáculo“, mas talvez seja a menos lida efetivamente. Na França, o interesse se colocou muito mais sobre a vida individual de Debord do que sobre sua obra. Também é mais forte o interesse por este início artístico da Internacional Situacionista (da qual Debord foi um dos arquitetos). Ele é conhecido como o último vanguardista, como o último dos escritores clássicos. Um fato paradoxal e interessante: o Governo Francês proibiu a saída das obras de Debord para uma universidade norte-americana. Foi declarado que se trata de um „tesouro nacional“, o que normalmente só acontece com escritores mortos há bastante tempo. Às vezes, a sociedade do espetáculo é considerada apenas um elemento que foi acrescentado à sua contribuição artística literária. Enquanto na sua vida não se falava muito nele, agora se fala bastante, mas dessa forma: relativizando os conceitos. No meu livro, pelo contrário, quero colocar sua obra do ponto de vista de uma crítica social.
Por que se fala menos do que se deveria desse retorno de Debord à teoria de Marx?
Porque a figura do artista, do escritor, da pessoa de vida aventurosa, ocupa mais facilmente espaço no campo da mídia do que uma pessoa que fez uma crítica social.
Essa leitura redutora, de confundir a crítica à sociedade do espetáculo como uma interpretação da mídia, também se reproduz na universidade?
Não acho que é uma questão do lugar onde isso se reproduz. Os situacionistas, em sua mitologia, queriam ficar longe dos meios universitários, acadêmicos. Preferiam frequentar os cafés de Paris, em torno dos mercados, ou se dirigir diretamente aos operários. Hoje, ao contrário, as poucas coisas que se pode dizer de Debord aparecem no meio universitário (nota do repórter: no Brasil, ainda há resistência na universidade ao pensamento de Debord. No Ceará, o movimento Crítica Radical é um dos principais responsáveis por sua promoção; nas universidades, ele é estudado sobretudo como crítico da mídia, nos cursos de Comunicação Social).
Não há certa ironia nesse retorno de Debord?
Todo mundo, os marxistas, a mídia, as instituições, as mesmas estruturas que foram atacadas por Debord, hoje o citam por toda parte e o estudam. Um dos slogans mais fortes dos situacionistas era „Nós queremos que as ideias voltem a ser perigosas“. Eles eram muito polêmicos, atacavam a todos, e hoje essa polêmica é o que chamamos na França de um golpe de espada dentro d´água. Mas sempre podemos retomar suas ideias e desenvolvê-las do modo mais subversivo, como o movimento da Crítica Radical. Mas não se pode dizer que Debord, tal como ele é conhecido, ainda mantém seu teor subversivo. Por outro lado, fico feliz em ver que numa greve em São Paulo os estudantes agitavam uma faixa onde se lia aquele slogan situacionista. Um dos movimentos mais atuantes na Argentina, de poucos anos atrás, chamava-se „Criar Situações“.
A universidade tem sido eficiente em fazer a ponte entre a sociedade e as ideias de Debord e Marx? Ou, nesse ponto, ela está mais isolada do que estava até os anos 60 e 70?
Duas coisas. Por um lado, à época, os situacionistas eram muito contrários a essa ideia de estar na universidade. Em geral, todos os grupos radicais recusavam essa ideia da institucionalização. Eles tinham razão. Aqueles que foram à universidade, como os neo-estruturalistas, Barthes, Foucault, logo foram recuperados pelo sistema. Acho que hoje é diferente. Eu mesmo dou aulas na universidade. No início, me perguntava se isso não significava ser um representante do sistema. Mas, por outro lado, vejo que os estudantes só escutam uma perspectiva crítica porque eu e outros estamos lá. Diante da pobreza intelectual que temos hoje, a universidade ainda consegue manter um certo nicho de discussão. Entretanto, há de se considerar o grande esforço do governo francês em transformar a universidade num espaço de preparação para o mercado de trabalho. Desse modo, afasta-se da universidade toda reflexão crítica. Com isso, os estudantes ficam contentes, porque a universidade se torna um investimento para encontrar um trabalho. Por isso que hoje é como o avesso do que aconteceu nos anos 60. Os professores têm mais espírito crítico que os alunos. E, para abrir a polêmica, pela primeira vez na história, os jovens na Europa são mais tolos que os velhos. Eles absorveram de maneira extremamente profunda a lógica do capitalismo do espetáculo.
Penso nas agitações que se deram na França há quatro anos, quando jovens foram às ruas e colocaram fogo em carros. Essa foi uma ação dentro da lógica do espetáculo ou contra ela?
A gente sentia que era uma revolta de pessoas excluídas do consumo, mas que queriam muito entrar nesse mundo. Era muito difícil ver ali, por menor que fosse, algum elemento que levasse à emancipação. Muitas vezes, as relações sociais que reinavam nesses conjuntos habitacionais eram muito piores do que em outras partes. No momento em que essas revoltas estavam em seu auge, o governo declarou toque de recolher noturno. Um jornalista ouviu de uma jovem: „Pra gente, é sempre toque de recolher. Não podemos sair sozinhos à noite“. É verdade que há uma raiva por trás, mas nada que possa levar a uma emancipação social. E me parece absurdo tentar interpretar isso como uma luta de classes.
Por que os jovens estão mais „tolos“ que os velhos?
Sobretudo porque, há algumas décadas, o capitalismo neoliberal reestruturou a sociedade de forma mais profunda do que antes. Por se sintetizar isso no fato de que antes a sociedade era abertamente autoritária. Ela suscitava a revolta e o sentido de se opor a ela. A escola, a Igreja, o serviço militar, tudo isso exigia submissão dos indivíduos. Esse autoritarismo cedeu lugar à sedução. A escola se apresenta como uma amiga que vai te ajudar a entrar mais fácil no mundo do trabalho. As famílias são menos autoritárias, sobretudo com relação às mulheres. Os conflitos em torno da sexualidade diminuíram bastante. Criou-se uma geração de consumidores felizes. Nos anos 70, queríamos evitar a todo custo a adaptação. Hoje, a grande preocupação dos jovens é estar bem adaptado, para não ser dispensado do mundo do trabalho.
Em que momento sua geração percebeu que algumas de suas conquistas eram, na verdade, tiros que saíram pela culatra?
A grande maioria não percebeu isso, com certeza. Queria citar um livro: „A Cultura do Narcisismo“, de Christopher Lasch. O impacto dele foi pouco, mas foi um dos primeiros a falar dessa questão.
DELLANO RIOS
REPÓRTER

